quinta-feira, 18 de agosto de 2011

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Para ler os homens

"(...) há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo. (...) Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia, etc., e por que motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas.

Refiro-me à semelhança das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança, etc., e não à semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas, etc. Quanto a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis, e tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E, embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações, tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma chave, e deixar-se as mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mal homem."

da introdução do Leviatã, de Hobbes

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Espinoza Clariceano

Benjamin Moser explora, na biografia Clarice,, relações possíveis entre a escritora brasileira Clarice Lispector e o filósofo Baruch Spinoza. Em seu primeiro livro, Clarice empresta muitos conceitos de Spinoza, ideias que ecoariam, segundo Moser, em toda a sua produção. Temas da metafísica, como a imortalidade da alma e a natureza de deus, são tratados na biografia, que transcrevo abaixo.
===

"Nos escritos de Clarice Lispector há ecos de outro grande pensador judeu, outro fruto do exílio, que encarou a morte de Deus e buscou recriar um universo moral em Sua ausência. Graças à descoberta tardia, na biblioteca de Clarice Lispector, de uma antologia francesa de Espinoza, a conexão não se mostra meramente especulativa, ou o possível resultado de uma coincidência de circunstâncias históricas. O livro traz anotações e a data 14 de fevereiro de 1941, inscrita à mão. Mesmo sem essa informação, o romance que ela inicia em março de 1942, Perto do Coração Selvagem, torna óbvio que ela lera Spinoza com atenção.

'Que exigissem dele artigos sobre Espinoza, mas que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha', começa dizendo uma longa passagem. (“Ele” é o estudante de direito Otávio, o futuro marido da protagonista, Joana.) Ele faz anotações:
O cientista puro deixa de crer no que gosta, mas não pode impedir-se de gostar do que crê. A necessidade de gostar: marca do homem. — Não esquecer: “o amor intelectual de Deus” é o verdadeiro conhecimento e exclui qualquer misticismo ou adoração. — Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na ideia por exemplo de que não pode haver pensamento nem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de São Tomás. Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação da natureza. — Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir, já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado.
Essa passagem é digna de nota em vários aspectos. Para começar, não é lá muito bem digerida: algumas partes são tiradas quase textualmente das anotações no final de seu exemplar de Spinoza ('Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir, já existe', por exemplo). Embora por algum motivo isso tenha fugido à atenção de seus muitos comentadores, é com folga a mais longa citação encontrável em seu extenso corpo de escritos, que de resto incluem apenas um punhado de citações, raramente mais do que uma ou duas frases. A exposição seca não é usual, uma explicação em staccato interessante também porque, em poucas linhas, oferece uma lista de muitas preocupações filosóficas que Clarice, ao longo da vida, iria animar e ilustrar de modo tão vívido.

A lista prossegue:
Se, quanto mais evoluído o homem, mais procura sistematizar, abstrair e estabelecer princípios e leis para sua vida, como poderia Deus — em qualquer acepção, mesmo na do Deus consciente das religiões — não ter leis absolutas pela sua própria perfeição?
Clarice frequentemente zombará desse 'Deus consciente das religiões', mas apenas porque ele ansiava tão desesperadamente pela mesma perfeição e convicção que Spinoza, ele também, rejeitara como algo impossível.
Um Deus dotado de livre-arbítrio é menos que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não precisa transformar-se diante de cada caso particular. A perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto — milhares de pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre — ou reconhecer um erro, corrigindo-o — o que, mais do que uma bondade ou “prova de caráter”, significa ter errado. — Nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus, diz Spinoza. Isso me faz mais feliz e me deixa mais livre. Porque a existência de um Deus consciente nos torna horrivelmente insatisfeitos.
(...) Ela conclui com uma das frases mais famosas de Spinoza, uma frase pela qual Perto do Coração Selvagem, com sua ênfase na energia animal que pulsa no universo, poderia ter sido lido como uma metáfora poética ampliada: 'No topo do estudo colocaria in litteris Spinoza traduzido: "Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância"'. O envolvimento filosófico de Clarice com Spinoza não era uma questão de copiar frases para em seguida esquecê-las. Os pensamentos dele seriam incorporados aos seus, e embora ela não viesse a citá-lo de novo com a mesma extensão, frases espinosianas ocorrem periodicamente em sua obra. O lustre, seu segundo romance, também contém uma quase citação de Spinoza: 'Para nascer as coisas precisam ter vida, pois nascer é um movimento — se disserem que o movimento é necessário apenas à coisa que faz nascer e não à nascida não é certo porque a coisa que faz nascer não pode fazer nascer algo fora de sua natureza e assim sempre se dá nascimento a uma coisa de sua própria espécie e assim com movimentos também'. Em seu terceiro romance, A cidade sitiada, encontramos a linha 'Não havia erro possível — tudo o que existia era perfeito — as coisas só começavam a existir quando perfeitas'. Ela repetiu isso duas décadas depois, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: 'Tudo o que existia era de uma grande perfeição'.
---

Essas ideias podem parecer obscuras, mas Clarice voltou a seu exemplar de Spinoza muitas vezes nos anos seguintes. Seria só pelos conceitos ou seria a busca de um modelo filosófico e moral? Tal como retratado por Arnold Zweig, que escreveu a longa introdução da edição de Spinoza de Clarice (...), Spinoza era um santo secular. Suas exortações para que o indivíduo se mantenha fiel a sua própria natureza teriam ressonância em Clarice; seu “grandioso panteísmo exerceu uma influência particular sobre poetas e pessoas de natureza poética, e sobre aquelas de temperamento fáustico'.

(...) eles compartilhavam certas similaridades biográficas importantes. Os pais de Spinoza eram judeus exilados de Portugal que tinham chegado a Amsterdam dez anos antes do seu nascimento. Ele perdeu a mãe quando tinha seis anos e passaria o resto da vida a pranteá-la. (Arnold Zweig atribuía a famosa fórmula de Spinoza: “Deus sive natura” — Deus, isto é, a natureza — a essa perda prematura. A ideia “elevamágica e misticamente a um princípio do mundo essa aliança e esse casamento, cuja destruição tinha sido a estrela negra de sua infância”.) Ambos perderam o pai quando tinha vinte anos, e ambos abandonaram o judaísmo organizados após a morte do pai. Ambos se frustraram em seu primeiro amor, Clarice por Lúcio Cardoso, e Spinoza, pela filha de seu professor. E ambos impressionavam os outros por seu caráter 'aristocrático' e, significantemente, 'estrangeiro'.

Talvez essas similaridades tenham atraído Clarice para o grande filósofo em quem ela encontrava uma confirmação de sua própria rejeição do 'Deus humanizado das religiões', aquele Deus consciente que se imiscui ativamente nos assuntos humanos. Deve ter surgido como um alívio para ela, cuja vida a tinha tornado consciente do absurdo de se fiar em milagres ou em qualquer outra intervenção. 'A ideia de um Deus consciente é terrivelmente insatisfatória', ela escreveu.

Real era a eminência divina que se manifestava na natureza animal amoral, no 'coração selvagem' que animava o universo. Para Spinoza, como para Clarice Lispector, a fidelidade a essa natureza divina interior era a meta mais nobre de todas.
---

[em Clarice] (...) vemos a inequívoca marca de Spinoza, que iguala a Natureza a Deus, e ambos, a uma ausência de bem e mal. 'Todas as coisas que estão na Natureza são ou coisas ou ações. Ora, o bem e o mal não são nem coisas nem ações. Portanto o bem e o mal não existem na Natureza', escreveu ele. Como filha da Natureza, Joana não é boa nem má, e não parece sequer estar ciente dessas categorias. Como Joana, a Natureza tem atributos 'positivos', liberdade, por exemplo, ao lado dos 'negativos': Joana é violenta, desonesta, agressiva.

Uma concepção espinosiana da Natureza resulta em que as mesmas regras que se aplicam ao homem aplicam-se igualmente a Deus, que não é mais um ser moral, preso a noções de bem e mal, interferindo em assuntos humanos, recompensando e punindo, mas uma categoria filosófica equivalente à Natureza. Não é mais 'o Deus humanizado das religiões', que Spinoza também chama de 'superstição' e 'ideias inadequadas', e que teria triunfado não fosse pela 'matemática, que não está preocupada com os fins, mas apenas com as essências e propriedades dos números, [mostrando aos] homens um novo padrão de verdade'.

(...) Joana leva adiante sua concepção espinosiana. Assim como não há separação significativa entre homem e animal, entre Joana e o gato e a víbora, tampouco o homem ou o animal está separado de Deus, a singular, infinita e eterna 'uma só substância' que é sinônimo de Natureza: uma só substância em constantes transição, encadeada por uma infinita corrente e efeito."

sábado, 17 de julho de 2010

Professores

Acredito que o de mais importante que se pode aprender de uma pessoa inteligente não é, a princípio, o conhecimento que ele tem sobre os assuntos de que gosta de falar; mas sim seu modo de pensar as coisas que pensa. O jeito com que aborda os assuntos, as coisas que se obriga a tentar perceber neles. Quando, por exemplo, João Adolfo Hansen, enquanto expõe um tema de forma mansa, escapa por uma digressão, afirma qualquer coisa e pergunta se aquilo pode ser do jeito que afirmou, geralmente reconsidera e diz: sim, por que não? — e aqui já ensinou algo mais útil a longo prazo do que o conteúdo do curso. Da maneira que vejo, é a procura pelo argumento contrário; procura deliberada pelo que me contradiz. Não é perguntar: "Por que é que o que eu digo está certo?", porque já estamos convencidos e repassar os dados só vai nos persuadir mais. É chamar a certeza na chincha. Equivale a perguntar: "Por que é que outra coisa não está certa, no lugar dessa?".

Hansen não foi exatamente meu professor, mas eu assisti a (parte de) algumas aulas. Em uma delas, ele também contou como desenvolveu um de seus trabalhos, sobre Gregório de Matos. Distante da obra do baiano, percorreu a obra várias vezes garimpando as palavras principais, para depois descobrir o que é que significavam para quem as dizia na época. Remontou assim o universo de pensamento de uma pessoa que morrera há séculos: para determinado poema e determinada expressão, tais e tais significados ficavam excluídos, havia o por que não claro direcionando a análise para a interpretação mais acertada. Isso leva a outra coisa que aprendi além do conteúdo do curso nesse primeiro semestre de Filosofia. Creio que a pergunta que faz a passagem entre o que acabei de dizer e o que pretendo é: por que é que alguém deveria se importar em entender o universo de pensamento de alguém que morreu há séculos?

Mas antes de eu passar à outra ideia, repare em uma coisa: você leu a pergunta anterior e se fez a pergunta ou leu e seguiu adiante? Quero dizer, você tem qualquer resposta para: por que se deve dar atenção ao pensamento velho morto arcaico obsoleto de outras épocas? Nesse outro texto, eu também fiz isso: pedi que o leitor desocupado pensasse algo. Roubei a atitude do professor Moacyr Novaes. Avançando pelo início das Meditações, de Descartes, eis que sugere que façamos a nós mesmos as mesmas perguntas que se colocou o filósofo francês. Para que se saía do piloto automático. Coisas assim: o que seria uma filosofia primeira, um conhecimento do qual dependessem todos os outros? Ou: o que são meditações, que é meditar sobre algo? 

Moacyr executa uma variação do detalhismo do Hansen, se você pensar. Com essas duas últimas questões, não passamos nem à primeira página do livro: ler devagar é outra coisa que se aprende. Pode ser irritante, cansativo e frustante caminhar às vezes frase à frase, parágrafo à parágrafo, mas vê-se o livro encorpar, atingir uma imagem mais completa a cada investida. E cada vez menos entendemos o que o escritor diz pelo que já sabemos e pelo que há no nosso próprio universo de pensamento, e cada vez mais nos aproximamos (talvez) do que ele realmente quis dizer, das consequências, filiações e deficiências do que quis dizer. Estudando a filosofia política de Locke, foi isso que Alberto Ribeiro nos fez notar: em que situação histórica Locke dizia o que dizia? Contra quem ele falava, quais eram seus adversários políticos, quais ideias queria derrubar? 

Dito isso, a ideia que eu me lembrava lá acima retiro do professor Pedro Paulo Pimenta: o que há nos vazios entre épocas, pensadores e ciências? Isto é: de uma ciência a outra, ambas tratando de uma mesmo assunto — assim como o entendimento de um mesmo objeto por épocas e pensadores distintos — há a perda de certa percepção — e o ganho de certa percepção. O significado de avanço aqui fica difuso; o progresso agrega elementos, mas desintegra outras partes. A resposta àquela pergunta passa, portanto, por repelir os adjetivos arcaico velho morto, pois nada em pensamento seria completamente desprezível, sendo todas as coisas em pensamento modos incompletos de perceber. Pedaços de conclusão. Monta-se um quebra-cabeça no fim das contas, avaliando a cada momento os prós e contras. Não existe manual.

São principalmente coisas fáceis de lembrar, posso colocar até de uma forma autoajuda: regra do 'por que não?', regra do 'se colocar a pergunta', regra da leitura lenta (ou cuidadosa), lei do progresso como perda de algo e ganho de outro algo. Coisas que ajudam a escapar do raciocínio próprio, do próprio universo engessado de pensamento. Outras pessoas dirão essas coisas que estou dizendo de outras forma: Terence Mckenna, por exemplo, dirá que a cultura (esse universo que cito) de cada um de nós é um sistema operacional. A metáfora permite dizer: programas não-compatíveis não rodam nesse sistema, não são sequer compreensíveis por ele; isto é, há opiniões ou fatos ou verdades que seriam cifras para você, simplesmente porque você não pode entendê-las.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Linguagem Pré-Linguística das Flores

Há um paralelo interessante que se pode fazer entre o Ensaio sobre a Origem das Línguas, de Jean-Jacques Rousseau, e A Brincadeira, romance de Milan Kundera. O filósofo francês, interessado em saber como surgiu a língua e a linguagem, especula sobre o homem em seus primórdios, antes de qualquer convenção, e se convence de que:
"(...) Apesar de serem a linguagem do gesto e a da voz igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para se exprimir. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço?" [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
A passagem tem força precisamente pela imagem que cria (algo a que Rousseau levará nossa atenção nos capítulos seguintes do livro); primeiro, faz alusão ao amor, a toda carga afetiva presente na enamorada que se declara ao enamorado. Segundo, a descrição do contornar da sombra é sutilmente poética. Toda a capacidade literária do filósofo seduz nosso entendimento, não? Sentimo-nos dispostos a concordar com a sua proposta de gênese da linguagem. Sem julgar o mérito da tese, avancemos à Kundera. Em A Brincadeira, há outra imagem, de ideia e teoria similar: 
"(...) em cada um de nossos encontros um buquê me esperava, e acabei acostumando-me, porque a espontaneidade do presente me desarmava e porque compreendi que Lucie gostava dessa forma de presentear; sofria talvez com a pobreza de sua eloquência e via nas flores uma maneira de falar; não segundo o pesado simbolismo da antiga linguagem das flores, mas sim num sentido ainda mais arcaico, mais nebuloso, mais instintivo, pré-linguístico; talvez, tendo sempre preferido calar-se em vez de falar, Lucie sonhasse com o tempo em que, não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos: com o dedo mostravam uma árvore, riam, tocavam um ao outro..." [A Brincadeira, terceira parte, capítulo 9, grifo nosso]
Há aqui também a sugestão de um estado prévio em que, "não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos", e depois segue também a descrição de uma alegria que é simples e bela por esse mesmo motivo. No trecho, a namorada do personagem, Lucie, escolhe um método mudo para expressar sua afeição; não contorna sua sombra, mas lhe entrega flores, sem o simbolismo pesadíssimo e sem levar em conta a convenção social que diz que quem dá flores são os homens. Um expressar de sentido instintivo, nebuloso e arcaico. Porém, Kundera se distancia muito de Rousseau quando diz que Lucie gostava de assim se dizer pois sua eloquência era pobre: para o francês, é precisamente saber ser eloquente o que ela faz.
"(...) se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. (...) Compreende-se mesmo que os discursos mais eloquentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores. (...) Entretanto, a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale." [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
Voltando à Kundera, vê-se em uma, por assim dizer, insignificância do cotidiano, a potência máxima de expressividade, resquício da língua original nos dias degradados de hoje. Em outro momento, o romancista tcheco vai destacar o irrelevante na relação amorosa: "Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de acontecimentos dramáticos, muitas vezes são decorrentes de circunstâncias que são à primeira vista perfeitamente insignificantes". E isso talvez seja porque compõem imagens que dizem muito mais do que qualquer eu te amo seria capaz de dizer.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Notas do "Ensaio sobre a Origem das Línguas"

Lourival Gomes Machado, que fez notas para o Ensaio sobre a Origem das Línguas, de Jean-Jacques Rousseau, a certa altura, nos deixa de sobreaviso sobre a tolice do filósofo francês. Na edição de Os Pensadores (1999), na nota 3, página 263, ela diz: "Concluindo anteriores desenvolvimentos, aqui se rejeita em definitivo qualquer explicação meramente fisiológica da comunicação pela linguagem. Assim se afirma a origem social da linguagem, tal como hoje a aceitam a psicologia e a sociologia atuais. Embora se sigam, na passagem, alguns equívocos de ordem zoológica, não chegam eles a invalidar a afirmação básica — "a língua de convenção só pertence ao homem". Antes que eu siga em frente, considere essa última frase e a ideia de que os homens começam a falar porque estão em sociedade, sem necessidade da língua se não há convívio. Considere.

Leve quanto tempo precisar, que não vou tratar disso hoje. Quero reparar um engano do comentador. Quando ela diz que Rousseau comete "alguns equívocos de ordem zoológica", ela se refere a esse trecho:
"Parece, ainda, pelas mesmas observações, que a invenção da arte de comunicar nossas ideias depende menos dos órgãos que nos servem para tal comunicação do que de uma faculdade própria do homem, que o faz empregar seus órgãos com o mesmo fim. Dai ao homem  uma organização tão grosseira quanto possais imaginar: induvitavelmente, adquirirá menos ideias, mas, desde que haja entre ele e seus semelhantes qualquer meio de comunicação pelo qual um possa agir e o outro sentir, acabarão afinal por comunicar todas as ideias que possuem.
"Os animais dispõem, para essa comunicação, de uma organização mais do que suficiente e jamais qualquer deles utilizou-a. Com o que, segundo me parece, se firma uma diferença muito característica. Aqueles animais que trabalham e vivem em comum, como os castores, as formigas e as abelhas, possuem — não duvido — alguma língua natural para se comunicarem entre si. Há mesmo razão para crer-se que a língua dos castores e a das formigas se compõem de gestos, falando somente aos olhos. De qualquer modo, justamente por serem naturais, tanto uma quanto outra dessas línguas não são adquiridas: os animais, que as falam, já as possuem ao nascer; todos as têm e em todos os lugares são as mesmas, absolutamente não as mudam e nelas não conhecem nenhum progresso. A língua de convenção só pertence ao homem e esta é a razão porque o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e porque os animais não conseguem. Essa distinção, por si só, pode levar-nos longe." (Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I; grifo nosso)
Certo, frente a isso, qual é o equívoco zoológico de Rousseau? Pesquisando, é possível saber que as abelhas, que foram citadas pelo filósofo, de fato possuem um esquema de comunicação muito elaborado, que se dá através de uma dança. Quanto às formigas, também citadas, há um vídeo interessante sobre gestos e comportamento que expressam sentido para elas: certa formiga, infectada por um fungo que poderia destruir a colônia, é afastada antes do parasita se desenvolver, é afastada para a morte no isolamento. As cenas que seguem podem lembrar Alien:


Assustador. Bom, além desses, existem as pesquisas sobre chimpanzés, sobre seu aprendizado da nossa linguagem e construção de conhecimento, e também sobre seu meio próprio de comunicar sentido. Encontra-se também pelo menos duas pesquisas (aqui e aqui) sobre a linguagem dos golfinhos. O paralelo rousseauniano vai na direção certa. Nessa última matéria sobre os macacos, repare nesse trecho:
"Será que grandes primatas e macacos têm uma linguagem secreta que ainda não foi decifrada? E se for o caso, será que isso vai resolver o mistério de como a faculdade humana da linguagem evoluiu? Biólogos abordam o assunto de duas maneiras: tentando ensinar linguagens humanas a chimpanzés e outras espécies, e escutando animais na vida selvagem. A primeira estratégia foi impulsionada pelo desejo intenso das pessoas - talvez reforçado pela exposição infantil a animais falantes em desenhos animados - de se comunicar com outras espécies. Os cientistas dedicaram imenso esforço para ensinar a linguagem a chimpanzés, seja na forma de sons ou de sinais." [leia completo]
Pois é, mas o que é posto como um avanço imprevisto da ciência, na verdade já existia; aqui o que se esquece é uma tradição anterior que já tinha se colocado essas questões. Há outros comentários a serem feitos sobre detalhes desse livro, mas vou postar depois.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O Profeta e os Peixes

Imagine que você está em um campo de pesca, sentado, vara lançada à água. Entra então um homem vestido de túnica branca, corda amarrada na cintura, barba alva, crespa, longa, a indumentária de um profeta. Ele chega à frente do mar, invoca as forças da natureza e um peixe salta em direção a uma rede que traz consigo. Faz isso uma vez e outra vez. O que você faz? Como você reage?

Ao que parece, a tendência de reação é o puro fascínio. Como se vê nessa pegadinha do Sílvio Santos:


O interessante é que todos só permanecem estáticos no fascínio, no choque. Nenhum deles se move, se levanta para checar o que há naquele lado de mar, nenhum deles faz menção de seguir o personagem, ir escondido ver quem, o que, se é uma armação, todos se aquietam e começam a criar fantasias. O último dos homens do vídeo já usa uma série de referências: profeta, mago... de tal modo que seria engraçado se, no final, o funcionário do programa não lhe dissesse que se tratava de uma câmera escondida. Esse homem contaria à família o que viu, aos amigos, se convenceria de uma série de histórias ou, até mesmo, no pior dos casos, criaria uma religião.

O que você faria na mesma situação?
hit counter for blogger