quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Linguagem Pré-Linguística das Flores

Há um paralelo interessante que se pode fazer entre o Ensaio sobre a Origem das Línguas, de Jean-Jacques Rousseau, e A Brincadeira, romance de Milan Kundera. O filósofo francês, interessado em saber como surgiu a língua e a linguagem, especula sobre o homem em seus primórdios, antes de qualquer convenção, e se convence de que:
"(...) Apesar de serem a linguagem do gesto e a da voz igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para se exprimir. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço?" [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
A passagem tem força precisamente pela imagem que cria (algo a que Rousseau levará nossa atenção nos capítulos seguintes do livro); primeiro, faz alusão ao amor, a toda carga afetiva presente na enamorada que se declara ao enamorado. Segundo, a descrição do contornar da sombra é sutilmente poética. Toda a capacidade literária do filósofo seduz nosso entendimento, não? Sentimo-nos dispostos a concordar com a sua proposta de gênese da linguagem. Sem julgar o mérito da tese, avancemos à Kundera. Em A Brincadeira, há outra imagem, de ideia e teoria similar: 
"(...) em cada um de nossos encontros um buquê me esperava, e acabei acostumando-me, porque a espontaneidade do presente me desarmava e porque compreendi que Lucie gostava dessa forma de presentear; sofria talvez com a pobreza de sua eloquência e via nas flores uma maneira de falar; não segundo o pesado simbolismo da antiga linguagem das flores, mas sim num sentido ainda mais arcaico, mais nebuloso, mais instintivo, pré-linguístico; talvez, tendo sempre preferido calar-se em vez de falar, Lucie sonhasse com o tempo em que, não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos: com o dedo mostravam uma árvore, riam, tocavam um ao outro..." [A Brincadeira, terceira parte, capítulo 9, grifo nosso]
Há aqui também a sugestão de um estado prévio em que, "não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos", e depois segue também a descrição de uma alegria que é simples e bela por esse mesmo motivo. No trecho, a namorada do personagem, Lucie, escolhe um método mudo para expressar sua afeição; não contorna sua sombra, mas lhe entrega flores, sem o simbolismo pesadíssimo e sem levar em conta a convenção social que diz que quem dá flores são os homens. Um expressar de sentido instintivo, nebuloso e arcaico. Porém, Kundera se distancia muito de Rousseau quando diz que Lucie gostava de assim se dizer pois sua eloquência era pobre: para o francês, é precisamente saber ser eloquente o que ela faz.
"(...) se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. (...) Compreende-se mesmo que os discursos mais eloquentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores. (...) Entretanto, a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale." [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
Voltando à Kundera, vê-se em uma, por assim dizer, insignificância do cotidiano, a potência máxima de expressividade, resquício da língua original nos dias degradados de hoje. Em outro momento, o romancista tcheco vai destacar o irrelevante na relação amorosa: "Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de acontecimentos dramáticos, muitas vezes são decorrentes de circunstâncias que são à primeira vista perfeitamente insignificantes". E isso talvez seja porque compõem imagens que dizem muito mais do que qualquer eu te amo seria capaz de dizer.

3 comentários:

Sujeito Oculto disse...

Lembrei-me daquele conceito sabido por todo colegial (ou decorado por qualquer vestibulando): a luz é mais rápida do que o som. Assim, o relâmpago chega-nos antes do que o trovão.
Não seria isso dito, nos versos de Rousseau? Vê-se antes.

Duanne Ribeiro disse...

Acho que é uma boa ilustração para essas coisas que eu citei e do jeito que citei. Mas não sei se vai servir pra tudo o que o Rousseau diz não. Tem de ver.

the ursprachist disse...

Veja:
Forgotten Language by Shel Silverstein

Stoned Ape theory by Terence McKenna

"Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de acontecimentos dramáticos, muitas vezes são decorrentes de circunstâncias que são à primeira vista perfeitamente insignificantes".

Synchronicities! Coincidance! God does not play dice! Theological attractor at the end of History guiding genetic streams through time!

( Quoint a quincidence! O.K. Omnius Kollidimus. As Ollover Krumwall sayed when he slepped ueber his grannyamother. Kangaroose feathers. Who in the name of thunder'd ever belevin you were that bolt? )

hit counter for blogger