sexta-feira, 19 de março de 2010

O que mantém a Filosofia viva

1. Na primeira aula que tive no curso de graduação, entre outras considerações, citaram várias especificidades do ensino de Filosofia. A primeira é que o curso é estruturado de forma profissionalizante, assim como os demais cursos da universidade. A segunda é que, ao contrário desses outros cursos, não prepara o aluno para uma atividade específica, não o equipa para resolver determinado tipo de situação ou problema. À primeira vista, pensei que o professor iria explorar o que, para mim, se mostrava como uma evidente contradição. Quando um aluno de medicina cumpre a sua carga horária, supõe-se que ele objetivamente estará pronto para operar um apêndice ou corrigir um fígado; mas ao fim do currículo de Filosofia, qual objetivamente minha função? Se não há finalidade assentada, todo currículo vale como qualquer outro; da mediocridade à excelência, as opções são múltiplas e não há critério simples para distinguir entre o que seja bom e o que seja ruim, porque não há ideal.

2. Isso é certamente válido para dois casos. A graduação, somada à licenciatura, dá um alvo claro ao recém-formado: ser professor. Qual o problema específico que um professor dessa matéria resolve? No Ensino Médio, tive três experiências. Ou o docente preenche a lousa com história e nos enche de frases que supõe-se conterem conceitos; ou ele tenta estimular uma série de discussões sem método sobre assuntos variados; ou uma união dos dois, que é o debate solto com interferência do professor citando a ideia de algum filósofo. O medíocre é possível em todos esses casos, e a sociedade nem teria como saber que ele o é, já que não há o modelo do que um filósofo deveria ser. Vou voltar a isso mais tarde. O outro caso que citei é o uso cotidiano do termo “filosofia”. Que significa qualquer ideologia, processo que deva ser seguido para qualquer coisa, opinião que se pense deslocada da realidade, de modo que todos sejam filósofos de alguma maneira ou de que a filosofia seja inútil de todo.

3. A terceira consideração que foi feita é: muitos dos assuntos tratados na Filosofia estão de forma latente envolvidos com nossa própria personalidade, interesses individuais/pessoais, temas que às vezes nos afetam diretamente e, por isso, o pensar sobre esses assuntos corre o risco de ser violentado pelos nossos preconceitos, prevenções e prejuízos. Nos interessamos pelos filósofos com quem concordamos ou cujas ideias servem a sustentar nossos próprios pensamentos prévios. Borges me parece descrever bem isso em "A Biblioteca de Babel":

“Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, mãos piedosas não faltarão que me tirem pela varanda afora; minha sepultura será o ar insondável: meu corpo se fundirá dilatadamente e se corromperá e dissolverá no vento originado pela queda que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável.” [leia completo]

4. No Ensino Médio, isso me descrevia de forma exata. Perguntei um dia à professora, que filosofia a seguir, de todas essas, os montes a derrapar nas prateleiras, qual o filósofo acima do vulgo, qual as ideias que compilam o resto, indicam a senda de luz. Não perguntei assim não, mas era assim. Do alto do meu conhecimento de O Mundo de Sofia, eu queria saber: so what? E ela me respondeu a resposta desagradável: não há. Pegamos os fragmentos de cada um para construir nosso ser. Era a melhor resposta que ela podia dar ou essa era a melhor que ela podia dar para mim? É até injusto que eu descreva as aulas dela como descrevi. No começo, havia ímpeto, havia vontade, mas ela perdeu o ânimo, afogada no desinteresse que era o padrão da sala, talvez pelas ideias que se tem da Filosofia e que citei. De todo modo, ela me cuspiu que eu não seguia em direção a um messias.

5. Se a Filosofia não se presta a embasar minha ideologia prévia; não se trata de um decorar esquemático da data em que nasceu Descartes e da única frase que disse: penso, logo existo; nem mesmo pode se achar com frequência na conversa delirante ou no bate-papo engajado cheio de palavras difíceis usadas sempre somente para provar o que o interlocutor quer, que inferno, então para que serve esse troço? Se é para ser professor, certo é que não seja para alimentar as atitudes enumeradas antes. Você pode estar pensando: lá em cima ele disse que não há função, e agora pergunta, assim, leviano? Acredito que haja uma função, sim. Mas ela não é um fator limitante. Não é uma estrada e o ponto de chegada. É o campo aberto e a incerteza. A floresta tenebrosa conosco no centro.

6. Essa última imagem é um retrabalho do que li em Descartes, depois faço a citação e você decide se eu usei o francês de forma errada. Acredito — tanto pelo que vim lendo durante toda a minha formação, pelos livros da infância e adolescência, pelo curso de Jornalismo e também pelas características que eu quero reconhecer na graduação atual — que a “função” da Filosofia é preparar para atuar em meio àqueles problemas “resolvidos” pela técnica e avaliar o que está nas entrelinhas. É desmontar os discursos, reinterpretar resultados, seguir a atualidade ao mesmo tempo em que se acompanha o percurso das ideias desde sempre, e assim desconstruindo crenças na originalidade de ideologias ou apontando falhas velhas. É, enfim, estabelecer a antesala da certeza, o espaço a percorrer antes de se lançar à fé. E que talvez nunca seja vencido de todo. A Filosofia não pode ter um fim, porque ela é a origem.

7. Não creio que possa ser só isso, mas acredito fortemente que essa seja a sua alma. Nós, antes, citamos vários exemplos do que era medíocre; agora, todo esse outro conjunto de acepções creio que leva ao que se chama excelência, seja qual for a linha de pesquisa que se assuma no futuro. Admiti-lo é assumir o propósito original. Compreender o que mantém a Filosofia viva.

domingo, 14 de março de 2010

Responsabilidade de Pensante

Entre os 16 e 20 anos, mantive o eutenhoumblog. Eis um texto da época.

(adicionei links e de resto não fiz qualquer alteração. O texto é de 10/12/2003.)
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Responsabilidade de Pensante

Mudar o mundo; Um animal é uma criança que só come, dorme e quer brincar. Um ser pensante é a criança que se considera o centro do mundo. Pensar, auto-denominar-se filósofo ou coisa que o valha é ter absoluta certeza de que suas idéias são melhores do que outras, é ter certeza de que sua concepção de vida é tão melhor que qualquer outra.

É crer que as pessoas devem segui-lo. Que são um rebanho de condenados.

Pensar é acreditar veementemente que o mundo todo está errado.

Pois pense: se o mundo está certo, para que me preocupar? Nadar a favor da corrente seria a alternativa correta; e para meio bilhão de pessoas, a vida está certa, o mundo está certo - é assim que as coisas devem ser, então, vamos seguir a corrente, e chegar primeiro, se der.

Controle populacional é fazer acreditar que as coisas estão certas, ou indo para algo certo; é criar um modus operandi da vida.

E é claro que eu acho que isso está errado; 'Criatura pensante', não foi o que eu disse? 'Bobeira é não viver a realidade'. A realidade, não fui eu que criei, não posso reclamar. Mas acho que está errado não reclamar, então, reclamo.

Pensar, filosofar, é fazer birra.

A única responsabilidade do pensante é fazer birra, o máximo que puder. Depois que você morre, chamam isso de revolução, e, ou te amam, ou te adoram.

Viver é ter alguém pra amar e alguém pra odiar.

Não se pensa quando ama, não se pensa quando odeia.

Pensar é não viver.

Coisas pensantes abdicam da vida e entram em algo diferente.

É responsabilidade de pensante voltar desse negócio estranho para a vida e dizer que foi legal.

Afinal, todo mundo conta história, 'no ato falho eu sou um fruto da criação'.
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