quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Fenomenologia Poética

Na introdução de A Poética do Espaço, o filósofo Gaston Bachelard propõe um método de análise literária que não se baseia no autor ou na obra; não avalia filiações biográficas nem implicações sociológicas ou coerências estruturais. Bachelard se volta ao elemento literário mais essencial, a imagem poética em sua unicidade, em outros termos: "Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade". (Bachelard, A Poética do EspaçoMartins Editora, 2000)

De que trata, como age uma pesquisa que se diz fenomenológica? Um modo de compreender o uso da palavra é procurar sua definição no “fundador da fenomenologia”, o filósofo alemão Edmund Husserl. Para Husserl, a fenomenologia é “filosofia como ciência rigorosa”, em essência diferente da pesquisa científica, porque trata não dos objetos sensíveis, mas dos fundamentos do saber. Não substitui, supera ou se envolve com as ciências tradicionais — mas analisa um objeto que é anterior a elas, que é como que suas condições de possibilidade. Nas palavras dele: "O método da crítica do conhecimento é o fenomenológico; a fenomenologia é a doutrina universal das essências, em que se integra a ciência da essência do conhecimento". (A Ideia da Fenomenologia, Lisboa: Edições 70, 2008).

A fenomenologia é portanto um pensamento que retorna às origens do pensamento. Embora as pesquisas dos dois filósofos sejam diferentes tanto em escopo quanto em alcance, é possível construir alguns paralelos esclarecedores sobre nosso tema.

Enquanto Husserl fala de “essência do conhecimento”, em sentido específico que não cabe avaliar aqui, Bachelard cita o “produto mais fugaz da consciência: a imagem poética”. Não só na literatura, mas na pintura, ele diz que sua fenomenologia “pode revelar o primeiro compromisso de uma obra”. Se a fenomenologia husserliana trata das condições que fazem possível o saber, a de Bachelard explora as que possibilitam a arte. Um está um passo antes da racionalidade, outro no mais primário da subjetividade. Bachelard dirá de seu objeto: “a imagem poética é um súbito realce do psiquismo”; “atualidade essencial, a essencial novidade psíquica”; ou ainda “o ato poético não tem passado”.

Alma e Espírito

Bachelard não só a chama seu projeto de “fenomenologia da imaginação”, mas também da alma. Esse segundo termo é elucidativo do campo de trabalho do filósofo, sendo preciso avaliar em que sentido ele é usado neste texto. No trecho "(...) na filosofia alemã (...) a distinção entre o espírito e a alma (der Geist e die Seele) é tão nítida" (Bachelard2000) temos uma primeira indicação do que possa significar. A filosofia alemã contemporânea a Bachelard de fato distinguia entre espírito e alma, como descrito no Dicionário de Filosofia - Tomo I, de José Ferrater-Mora
"O vocábulo ‘alma’ voltou a ser usado por vários autores contemporâneos (Jaspers, Scheler, Ortega y Gasset, F. Noltenius etc.) num sentido um pouco diferente de qualquer um dos tradicionais. (...) Enquanto a alma é concebida como a "sede" dos atos emotivos, dos afetos, sentimentos etc., o espírito é definido como a "sede" de certos atos "racionais" (atos por meio dos quais se formulam juízos objetivos ou pretensamente objetivos). De acordo com isso, a alma é subjetividade, enquanto o espírito é objetividade." (São Paulo: Edições Loyola: 2004).
Podemos crer que esta é uma posição próxima a de Bachelard, dado o seguinte trecho:
"O espírito pode relaxar-se; mas no devaneio poético a alma está de vigília, sem tensão, repousada e ativa. Para fazer um poema completo, bem estruturado, será preciso que o espírito o prefigure em projetos. Mas para uma simples imagem poética não há projeto, não lhe é necessário mais que um movimento da alma. Numa imagem poética a alma afirma a sua presença." (Bachelard2000
A descrição de imagem poética ao longo da introdução de A Poética do Espaço traz com frequência esse ingrediente dinâmico, essa iminência. Bachelard diz: “a explosão de uma imagem”; “a imagem repentina, a chama do ser na imaginação”; “a alma inaugura. Ela é aqui potência inicial” [grifos meus].  Mais adiante, na parte IV do texto, afirmará que as imagens poéticas fazem parte de uma “primitividade da imaginação”. O trecho é significativo, pois reforça a interpretação que expomos acima sobre alma e espírito: "(...) um pequeno impulso de admiração é necessário para se obter o benefício fenomenológico de uma imagem poética. A menor reflexão crítica detém esse impulso, colocando o espírito em posição secundária, o que destrói a primitividade da imaginação" (idem).

O mesmo trecho permite entrever um outro elemento fundamental: o encontro de uma subjetividade com a imagem poética, fruto primário de outra subjetividade.
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