terça-feira, 18 de outubro de 2011

Astrologia, Marxismo e Psicanálise: Pseudociências?

"Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada. (...) Posso exemplificar o que acabo de afirmar com a ajuda das diversas teorias já mencionadas. A teoria da gravitação de Einstein satisfazia nitidamente o critério da "refutabilidade". Mesmo se, naquela época, nossos instrumentos não nos permitiam ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claramente a possibilidade de refutar a teoria.

A astrologia não passou no teste. Os astrólogos estavam muito impressionados e iludidos com aquilo que acreditavam ser evidência confirmadora — tanto assim que pouco se preocupavam com qualquer evidência desfavorável. Além disso, tornando suas profecias e interpretações suficientemente vagas eram capazes de explicar qualquer coisa que possivelmente refutasse sua teoria se ela e as profecias fossem mais precisas. Para escapar à falsificação, destruíram a "testabilidade" de sua teoria. É um truque típico do adivinhador fazer predições tão vagas que dificilmente falham: se tornam irrefutáveis.

Apesar dos esforços sérios de alguns de seus fundadores e seguidores, a teoria marxista da história tem ultimamente adotado essa mesma prática dos adivinhadores. Em algumas de suas formulações anteriores (como, por exemplo, na análise de Marx sobre o caráter da "revolução social vindoura"), as predições eram "testáveis" e foram refutadas. Mas em vez de aceitar as refutações, os seguidores de Marx reinterpretaram a teoria e a evidência para fazê-la concordar entre si. Salvaram assim a teoria da refutação, mas ao preço de adotar um artifício que a tornou de todo irrefutável. Provocaram, assim, uma distorção "convencionalista" destruindo-lhes as anunciadas pretensões a um padrão científico.

As duas teorias psicanalíticas pertencem a outra categoria, por serem simplesmente não "testáveis" e irrefutáveis. Não se podia conceber um tipo de comportamento humano capaz de contradizê-las. Isso não significa que Freud e Adler estivessem de todo errados. Pessoalmente, não duvido da importância de muito do que afirmam e acredito que algum dia essas afirmações terão um papel importante numa ciência psicológica "testável". Contudo, as "observações clínicas", da mesma maneira que as confirmações diárias encontradas pelos astrólogos, não podem mais ser consideradas confirmações da teoria, como acreditam ingenuamente os analistas. Quanto à epopeia freudiana do Ego, Supergo e Id, não se pode reinvidicar para ela um padrão científico mais rigoroso do que o das estórias de Homero sobre o Olimpo. Essas teorias descrevem fatos, mas à maneira de mitos: sugerem fatos psicológicos interessantes, mas não de maneira testável."


do primeiro capítulo de Conjecturas e Refutações, de Karl Popper.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Da Percepção da Incongruência

"Numa experiência psicológica que merece ser melhor conhecida fora de seu campo original, Bruner e Postman pediram a sujeitos experimentais para que identificassem uma série de cartas de baralho, após serem expostos a elas durante períodos curtos e experimentalmente controlados. Muitas das cartas eram normais, mas algumas tinham sido modificadas, como, por exemplo, um seis de espadas vermelho e um quatro de copas preto. Cada sequência experimental consistia em mostrar uma única carta a uma única pessoa, numa série de apresentações cuja duração crescia gradualmente. Depois de cada apresentação, perguntava-se a cada participante o que ele vira. A sequência terminava após duas identificações corretas sucessivas.

Mesmo nas exposições mais breves muito indivíduos identificavam a maioria das cartas. Depois de um pequeno acréscimo no tempo de exposição, todos os entrevistados identificaram todas as cartas. No caso das cartas normais, essas identificações eram geralmente corretas, mas as cartas anômalas eram quase sempre identificadas como normais, sem hesitação ou perplexidade aparentes. Por exemplo, o quatro de copas preto era tomado pelo quatro de espadas ou de copas. Sem qualquer consciência da anomalia, ele era imediatamente adaptado a uma das categorias conceituais preparadas pela experiência prévia. Não gostaríamos nem mesmo de dizer que os entrevistados viam algo diferente daquilo que identificavam. Com uma exposição maior das cartas anômalas, os entrevistados começaram então a hesitar e a demonstrar consciência da anomalia. Por exemplo, frente ao seis de espadas vermelho, alguns disseram: isto é um seis de espadas, mas há algo de errado com ele — o preto tem um contorno vermelho. Uma exposição um pouco maior deu margem a hesitações e confusões ainda maiores até que, finalmente, algumas vezes de modo repentino, a maioria dos entrevistados passou a fazer a identificação correta sem hesitação. Além disso, depois de repetir a exposição com duas ou três cartas anômalas, já não tinham dificuldade com as restantes.

Contudo, alguns entrevistados não foram capazes de realizar a adaptação de suas categorias que era necessária. Mesmo com um tempo médio de exposição quarenta vezes superior ao que era necessário para reconhecer as cartas normais com exatidão, mais de dez por cento das cartas anômalas não foram identificadas corretamente. Os entrevistados que fracassaram nessas condições experimentavam muitas vezes uma grande aflição. Um deles exclamou: 'não posso fazer a distinção, seja lá qual for. Desta vez nem parecia ser uma carta. Já não sei sua cor, nem se se é de espadas ou de copas. Não estou seguro nem mesmo a respeito do que é uma carta de copas. Meu deus!'."


do capítulo 5 de A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Kuhn

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Para ler os homens

"(...) há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo. (...) Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia, etc., e por que motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas.

Refiro-me à semelhança das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança, etc., e não à semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas, etc. Quanto a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis, e tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E, embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações, tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma chave, e deixar-se as mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mal homem."

da introdução do Leviatã, de Hobbes

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Espinoza Clariceano

Benjamin Moser explora, na biografia Clarice,, relações possíveis entre a escritora brasileira Clarice Lispector e o filósofo Baruch Spinoza. Em seu primeiro livro, Clarice empresta muitos conceitos de Spinoza, ideias que ecoariam, segundo Moser, em toda a sua produção. Temas da metafísica, como a imortalidade da alma e a natureza de deus, são tratados na biografia, que transcrevo abaixo.
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"Nos escritos de Clarice Lispector há ecos de outro grande pensador judeu, outro fruto do exílio, que encarou a morte de Deus e buscou recriar um universo moral em Sua ausência. Graças à descoberta tardia, na biblioteca de Clarice Lispector, de uma antologia francesa de Espinoza, a conexão não se mostra meramente especulativa, ou o possível resultado de uma coincidência de circunstâncias históricas. O livro traz anotações e a data 14 de fevereiro de 1941, inscrita à mão. Mesmo sem essa informação, o romance que ela inicia em março de 1942, Perto do Coração Selvagem, torna óbvio que ela lera Spinoza com atenção.

'Que exigissem dele artigos sobre Espinoza, mas que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha', começa dizendo uma longa passagem. (“Ele” é o estudante de direito Otávio, o futuro marido da protagonista, Joana.) Ele faz anotações:
O cientista puro deixa de crer no que gosta, mas não pode impedir-se de gostar do que crê. A necessidade de gostar: marca do homem. — Não esquecer: “o amor intelectual de Deus” é o verdadeiro conhecimento e exclui qualquer misticismo ou adoração. — Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na ideia por exemplo de que não pode haver pensamento nem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de São Tomás. Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação da natureza. — Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir, já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado.
Essa passagem é digna de nota em vários aspectos. Para começar, não é lá muito bem digerida: algumas partes são tiradas quase textualmente das anotações no final de seu exemplar de Spinoza ('Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir, já existe', por exemplo). Embora por algum motivo isso tenha fugido à atenção de seus muitos comentadores, é com folga a mais longa citação encontrável em seu extenso corpo de escritos, que de resto incluem apenas um punhado de citações, raramente mais do que uma ou duas frases. A exposição seca não é usual, uma explicação em staccato interessante também porque, em poucas linhas, oferece uma lista de muitas preocupações filosóficas que Clarice, ao longo da vida, iria animar e ilustrar de modo tão vívido.

A lista prossegue:
Se, quanto mais evoluído o homem, mais procura sistematizar, abstrair e estabelecer princípios e leis para sua vida, como poderia Deus — em qualquer acepção, mesmo na do Deus consciente das religiões — não ter leis absolutas pela sua própria perfeição?
Clarice frequentemente zombará desse 'Deus consciente das religiões', mas apenas porque ele ansiava tão desesperadamente pela mesma perfeição e convicção que Spinoza, ele também, rejeitara como algo impossível.
Um Deus dotado de livre-arbítrio é menos que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não precisa transformar-se diante de cada caso particular. A perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto — milhares de pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre — ou reconhecer um erro, corrigindo-o — o que, mais do que uma bondade ou “prova de caráter”, significa ter errado. — Nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus, diz Spinoza. Isso me faz mais feliz e me deixa mais livre. Porque a existência de um Deus consciente nos torna horrivelmente insatisfeitos.
(...) Ela conclui com uma das frases mais famosas de Spinoza, uma frase pela qual Perto do Coração Selvagem, com sua ênfase na energia animal que pulsa no universo, poderia ter sido lido como uma metáfora poética ampliada: 'No topo do estudo colocaria in litteris Spinoza traduzido: "Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância"'. O envolvimento filosófico de Clarice com Spinoza não era uma questão de copiar frases para em seguida esquecê-las. Os pensamentos dele seriam incorporados aos seus, e embora ela não viesse a citá-lo de novo com a mesma extensão, frases espinosianas ocorrem periodicamente em sua obra. O lustre, seu segundo romance, também contém uma quase citação de Spinoza: 'Para nascer as coisas precisam ter vida, pois nascer é um movimento — se disserem que o movimento é necessário apenas à coisa que faz nascer e não à nascida não é certo porque a coisa que faz nascer não pode fazer nascer algo fora de sua natureza e assim sempre se dá nascimento a uma coisa de sua própria espécie e assim com movimentos também'. Em seu terceiro romance, A cidade sitiada, encontramos a linha 'Não havia erro possível — tudo o que existia era perfeito — as coisas só começavam a existir quando perfeitas'. Ela repetiu isso duas décadas depois, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: 'Tudo o que existia era de uma grande perfeição'.
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Essas ideias podem parecer obscuras, mas Clarice voltou a seu exemplar de Spinoza muitas vezes nos anos seguintes. Seria só pelos conceitos ou seria a busca de um modelo filosófico e moral? Tal como retratado por Arnold Zweig, que escreveu a longa introdução da edição de Spinoza de Clarice (...), Spinoza era um santo secular. Suas exortações para que o indivíduo se mantenha fiel a sua própria natureza teriam ressonância em Clarice; seu “grandioso panteísmo exerceu uma influência particular sobre poetas e pessoas de natureza poética, e sobre aquelas de temperamento fáustico'.

(...) eles compartilhavam certas similaridades biográficas importantes. Os pais de Spinoza eram judeus exilados de Portugal que tinham chegado a Amsterdam dez anos antes do seu nascimento. Ele perdeu a mãe quando tinha seis anos e passaria o resto da vida a pranteá-la. (Arnold Zweig atribuía a famosa fórmula de Spinoza: “Deus sive natura” — Deus, isto é, a natureza — a essa perda prematura. A ideia “elevamágica e misticamente a um princípio do mundo essa aliança e esse casamento, cuja destruição tinha sido a estrela negra de sua infância”.) Ambos perderam o pai quando tinha vinte anos, e ambos abandonaram o judaísmo organizados após a morte do pai. Ambos se frustraram em seu primeiro amor, Clarice por Lúcio Cardoso, e Spinoza, pela filha de seu professor. E ambos impressionavam os outros por seu caráter 'aristocrático' e, significantemente, 'estrangeiro'.

Talvez essas similaridades tenham atraído Clarice para o grande filósofo em quem ela encontrava uma confirmação de sua própria rejeição do 'Deus humanizado das religiões', aquele Deus consciente que se imiscui ativamente nos assuntos humanos. Deve ter surgido como um alívio para ela, cuja vida a tinha tornado consciente do absurdo de se fiar em milagres ou em qualquer outra intervenção. 'A ideia de um Deus consciente é terrivelmente insatisfatória', ela escreveu.

Real era a eminência divina que se manifestava na natureza animal amoral, no 'coração selvagem' que animava o universo. Para Spinoza, como para Clarice Lispector, a fidelidade a essa natureza divina interior era a meta mais nobre de todas.
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[em Clarice] (...) vemos a inequívoca marca de Spinoza, que iguala a Natureza a Deus, e ambos, a uma ausência de bem e mal. 'Todas as coisas que estão na Natureza são ou coisas ou ações. Ora, o bem e o mal não são nem coisas nem ações. Portanto o bem e o mal não existem na Natureza', escreveu ele. Como filha da Natureza, Joana não é boa nem má, e não parece sequer estar ciente dessas categorias. Como Joana, a Natureza tem atributos 'positivos', liberdade, por exemplo, ao lado dos 'negativos': Joana é violenta, desonesta, agressiva.

Uma concepção espinosiana da Natureza resulta em que as mesmas regras que se aplicam ao homem aplicam-se igualmente a Deus, que não é mais um ser moral, preso a noções de bem e mal, interferindo em assuntos humanos, recompensando e punindo, mas uma categoria filosófica equivalente à Natureza. Não é mais 'o Deus humanizado das religiões', que Spinoza também chama de 'superstição' e 'ideias inadequadas', e que teria triunfado não fosse pela 'matemática, que não está preocupada com os fins, mas apenas com as essências e propriedades dos números, [mostrando aos] homens um novo padrão de verdade'.

(...) Joana leva adiante sua concepção espinosiana. Assim como não há separação significativa entre homem e animal, entre Joana e o gato e a víbora, tampouco o homem ou o animal está separado de Deus, a singular, infinita e eterna 'uma só substância' que é sinônimo de Natureza: uma só substância em constantes transição, encadeada por uma infinita corrente e efeito."

sábado, 17 de julho de 2010

Professores

Acredito que o de mais importante que se pode aprender de uma pessoa inteligente não é, a princípio, o conhecimento que ele tem sobre os assuntos de que gosta de falar; mas sim seu modo de pensar as coisas que pensa. O jeito com que aborda os assuntos, as coisas que se obriga a tentar perceber neles. Quando, por exemplo, João Adolfo Hansen, enquanto expõe um tema de forma mansa, escapa por uma digressão, afirma qualquer coisa e pergunta se aquilo pode ser do jeito que afirmou, geralmente reconsidera e diz: sim, por que não? — e aqui já ensinou algo mais útil a longo prazo do que o conteúdo do curso. Da maneira que vejo, é a procura pelo argumento contrário; procura deliberada pelo que me contradiz. Não é perguntar: "Por que é que o que eu digo está certo?", porque já estamos convencidos e repassar os dados só vai nos persuadir mais. É chamar a certeza na chincha. Equivale a perguntar: "Por que é que outra coisa não está certa, no lugar dessa?".

Hansen não foi exatamente meu professor, mas eu assisti a (parte de) algumas aulas. Em uma delas, ele também contou como desenvolveu um de seus trabalhos, sobre Gregório de Matos. Distante da obra do baiano, percorreu a obra várias vezes garimpando as palavras principais, para depois descobrir o que é que significavam para quem as dizia na época. Remontou assim o universo de pensamento de uma pessoa que morrera há séculos: para determinado poema e determinada expressão, tais e tais significados ficavam excluídos, havia o por que não claro direcionando a análise para a interpretação mais acertada. Isso leva a outra coisa que aprendi além do conteúdo do curso nesse primeiro semestre de Filosofia. Creio que a pergunta que faz a passagem entre o que acabei de dizer e o que pretendo é: por que é que alguém deveria se importar em entender o universo de pensamento de alguém que morreu há séculos?

Mas antes de eu passar à outra ideia, repare em uma coisa: você leu a pergunta anterior e se fez a pergunta ou leu e seguiu adiante? Quero dizer, você tem qualquer resposta para: por que se deve dar atenção ao pensamento velho morto arcaico obsoleto de outras épocas? Nesse outro texto, eu também fiz isso: pedi que o leitor desocupado pensasse algo. Roubei a atitude do professor Moacyr Novaes. Avançando pelo início das Meditações, de Descartes, eis que sugere que façamos a nós mesmos as mesmas perguntas que se colocou o filósofo francês. Para que se saía do piloto automático. Coisas assim: o que seria uma filosofia primeira, um conhecimento do qual dependessem todos os outros? Ou: o que são meditações, que é meditar sobre algo? 

Moacyr executa uma variação do detalhismo do Hansen, se você pensar. Com essas duas últimas questões, não passamos nem à primeira página do livro: ler devagar é outra coisa que se aprende. Pode ser irritante, cansativo e frustante caminhar às vezes frase à frase, parágrafo à parágrafo, mas vê-se o livro encorpar, atingir uma imagem mais completa a cada investida. E cada vez menos entendemos o que o escritor diz pelo que já sabemos e pelo que há no nosso próprio universo de pensamento, e cada vez mais nos aproximamos (talvez) do que ele realmente quis dizer, das consequências, filiações e deficiências do que quis dizer. Estudando a filosofia política de Locke, foi isso que Alberto Ribeiro nos fez notar: em que situação histórica Locke dizia o que dizia? Contra quem ele falava, quais eram seus adversários políticos, quais ideias queria derrubar? 

Dito isso, a ideia que eu me lembrava lá acima retiro do professor Pedro Paulo Pimenta: o que há nos vazios entre épocas, pensadores e ciências? Isto é: de uma ciência a outra, ambas tratando de uma mesmo assunto — assim como o entendimento de um mesmo objeto por épocas e pensadores distintos — há a perda de certa percepção — e o ganho de certa percepção. O significado de avanço aqui fica difuso; o progresso agrega elementos, mas desintegra outras partes. A resposta àquela pergunta passa, portanto, por repelir os adjetivos arcaico velho morto, pois nada em pensamento seria completamente desprezível, sendo todas as coisas em pensamento modos incompletos de perceber. Pedaços de conclusão. Monta-se um quebra-cabeça no fim das contas, avaliando a cada momento os prós e contras. Não existe manual.

São principalmente coisas fáceis de lembrar, posso colocar até de uma forma autoajuda: regra do 'por que não?', regra do 'se colocar a pergunta', regra da leitura lenta (ou cuidadosa), lei do progresso como perda de algo e ganho de outro algo. Coisas que ajudam a escapar do raciocínio próprio, do próprio universo engessado de pensamento. Outras pessoas dirão essas coisas que estou dizendo de outras forma: Terence Mckenna, por exemplo, dirá que a cultura (esse universo que cito) de cada um de nós é um sistema operacional. A metáfora permite dizer: programas não-compatíveis não rodam nesse sistema, não são sequer compreensíveis por ele; isto é, há opiniões ou fatos ou verdades que seriam cifras para você, simplesmente porque você não pode entendê-las.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Linguagem Pré-Linguística das Flores

Há um paralelo interessante que se pode fazer entre o Ensaio sobre a Origem das Línguas, de Jean-Jacques Rousseau, e A Brincadeira, romance de Milan Kundera. O filósofo francês, interessado em saber como surgiu a língua e a linguagem, especula sobre o homem em seus primórdios, antes de qualquer convenção, e se convence de que:
"(...) Apesar de serem a linguagem do gesto e a da voz igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para se exprimir. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço?" [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
A passagem tem força precisamente pela imagem que cria (algo a que Rousseau levará nossa atenção nos capítulos seguintes do livro); primeiro, faz alusão ao amor, a toda carga afetiva presente na enamorada que se declara ao enamorado. Segundo, a descrição do contornar da sombra é sutilmente poética. Toda a capacidade literária do filósofo seduz nosso entendimento, não? Sentimo-nos dispostos a concordar com a sua proposta de gênese da linguagem. Sem julgar o mérito da tese, avancemos à Kundera. Em A Brincadeira, há outra imagem, de ideia e teoria similar: 
"(...) em cada um de nossos encontros um buquê me esperava, e acabei acostumando-me, porque a espontaneidade do presente me desarmava e porque compreendi que Lucie gostava dessa forma de presentear; sofria talvez com a pobreza de sua eloquência e via nas flores uma maneira de falar; não segundo o pesado simbolismo da antiga linguagem das flores, mas sim num sentido ainda mais arcaico, mais nebuloso, mais instintivo, pré-linguístico; talvez, tendo sempre preferido calar-se em vez de falar, Lucie sonhasse com o tempo em que, não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos: com o dedo mostravam uma árvore, riam, tocavam um ao outro..." [A Brincadeira, terceira parte, capítulo 9, grifo nosso]
Há aqui também a sugestão de um estado prévio em que, "não existindo as palavras, as pessoas conversavam por meio de pequenos gestos", e depois segue também a descrição de uma alegria que é simples e bela por esse mesmo motivo. No trecho, a namorada do personagem, Lucie, escolhe um método mudo para expressar sua afeição; não contorna sua sombra, mas lhe entrega flores, sem o simbolismo pesadíssimo e sem levar em conta a convenção social que diz que quem dá flores são os homens. Um expressar de sentido instintivo, nebuloso e arcaico. Porém, Kundera se distancia muito de Rousseau quando diz que Lucie gostava de assim se dizer pois sua eloquência era pobre: para o francês, é precisamente saber ser eloquente o que ela faz.
"(...) se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. (...) Compreende-se mesmo que os discursos mais eloquentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores. (...) Entretanto, a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale." [Ensaio sobre a Origem das Línguas, Capítulo I]
Voltando à Kundera, vê-se em uma, por assim dizer, insignificância do cotidiano, a potência máxima de expressividade, resquício da língua original nos dias degradados de hoje. Em outro momento, o romancista tcheco vai destacar o irrelevante na relação amorosa: "Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de acontecimentos dramáticos, muitas vezes são decorrentes de circunstâncias que são à primeira vista perfeitamente insignificantes". E isso talvez seja porque compõem imagens que dizem muito mais do que qualquer eu te amo seria capaz de dizer.
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